A velha máquina de escrever na mesa, o carro e as teclas desgastados, vez ou outra enrosca no j ou m; não vou aderir a esta tecnologia imperialista. Sei que dizem ser ignorância, falam da globalização, me chamam de casmurro, que se danem todos.
Ao fundo, na parede também velha, a janela permite a vista da avenida, sempre movimentada e mal pavimentada. Nas manhãs, é por ali que o sol invade. A correria diária se prolonga às tardes como diarréia, pernas mazeladas percorrendo caminhos esburacados. As noites se repetem em amiúdes desgraças.
Às vezes me é possível observar prostitutas e transexuais quase desnudos, talvez perfumados com algum sabonete barato, condensado a cheiro de escarro e esperma. Logo se confundem com marginais, vendedores ambulantes e tiras fardados ou a paisana correndo atrás de cheiradores de cola e de crack, “cobrando pedágio”.
Logo olhando pela indiscreta janela, lembro do mestre do suspense, envolto num grito abafado e silencioso, misturado ao hálito quente na voz rouca que eu tanto..., perdão, os lábios enormes e carnudos que mordiam meu corpo. Sem que se esforce para perceber, tudo ao redor é carregado de passado. Talvez também eu o seja, se tanto, basta olhar os cabelos grisalhos ou as rugas que cercam os olhos deformando o rosto.
As mãos firmes, apesar do pesar dos tempos, nem apanharam o papel quando vozes alteradas e tensas se acusam. Levantei da cadeira, tranqüilo, em direção à janela. Dois homens discutindo e se apontando. A cena, ímpar; dois carros, vidro macetado no chão e lataria afundada. Questionavam o de sempre.
Alguém de fora aproximou, tentou dar razão a um, ao outro, nada. Por fim, a situação parecia controlada, perdi o interesse no caso. Voltei à velha cadeira, a fim de escrever a crônica do dia. Não tinha o que escrever; o gelo quase derretido, o uísque quase todo bebido e o cigarro já apagado; eu estava decadente. Era necessário me recompor, acender outro cigarro, servir mais bebida, se é que restara, e acrescentar gelo.
Novamente fui ao pequeno bar no canto direito da sala, quase de frente à janela, e me servi. Não precisava escolher, o mesmo velho uísque da garrafa vermelha parecia ser a única ali, ainda que existissem outras. Disposto a beber até o último gole, fui esvaziando a garrafa. Ainda se podia ouvir as discussões, mas espera, não me interessava olhar novamente. Caso acontecesse, acabaria o uísque e o cigarro apagaria, e eu teria que levantar e fazer tudo novamente.
Passei desapercebido pela janela. Sentei em frente à máquina e dei uma tragada. Peguei a folha ainda branca e, antes de colocá-la na máquina, um gole. Sem ter o que escrever percebi a fumaça que subia reta saindo do cigarro e logo acima se perdia no ar, tanto a da minha boca quanto a do cigarro. O uísque me pareceu mais interessante. Outra tragada, seguida de outro gole. Enquanto marcava a margem, prosseguia a discussão que da avenida subia reto à janela do meu apartamento e, em seu interior, se perdia ecoando pelos cantos da sala.
Levantei da cadeira novamente, domado pela curiosidade. Fui à janela observar os ares impuros da madrugada, sem ver a confusão, insistindo em continuar. Olhei o céu, escuro, algumas estrelas mantinham um brilho fosco. Logo se percebia uma madrugada tímida e solitária. Ventava pouco, a temperatura quase agradável e ali, um tanto ébrio, a solidão se fazia minha companheira.
Voltei da janela, talvez aliviado. Cachimbo estava no mesmo lugar de sempre, ao pé oposto da mesa onde eu sentara, deitado sobre o tapete vermelho. O que posso falar de tal bichano sossegado? Quase não dá trabalho! Basta colocar comida duas vezes ao dia e lhe fazer um punhado de carinho no final da tarde. Nunca é mal agradecido, nem esconde minhas revistas e jornais. Não se importa com o canal de televisão ou com a estação de rádio. Ouve qualquer tipo de música e não faz comentários durante ou no intervalo dos filmes. Por esse motivo me é mais agradável a companhia de um gato, e não a dela. Ela. Mesmo que não quisesse falar sobre, seria impossível não percebê-la entre os cômodos. Pra tanto, basta olhar o quadro no corredor, um exagero! Pudera, com tanta beleza, logo quis modificar a decoração, mulher tempestiva! Seu perfume invadia a casa logo que entrava pela porta ou saía do banho, com a pele rosada e os cabelos molhados se deixando escorrer pelo rosto.
Agora resta o mofo nas paredes do quarto e um gosto azedo na cozinha. Mas não posso viver de saudades, e tenho que escrever a crônica para o jornal. Pior! Tenho que levantar às seis da manhã. Com tantos compromissos, não resisti a outro gole e tragada. Tento me concentrar e escrever algo, pudera, ouço sirene! A discussão permanecia. Talvez um tiro, dois, a situação parecia piorar. Agora vozes que, talvez nítidas, anunciavam voz de prisão.
- Mãos na cabeça!
Lamentável o português errado e vulgar que se podia ouvir. Ignorância pura ou era um polvo defeituoso. Outro tiro, que silenciou e esvaziou o local. Não tardou para que a sirene voltasse novamente. Olhei para Cachimbo, que me re-olhava intrigado. Não muito, pois baixou a cabeça e voltou a dormir. Continuei a olhar à máquina. O papel, ainda branco, já não suportava mais ficar preso e contorcido naquele carro de metal. Nem ao menos a data, o título, a idéia. Eu estava evasivo.
A sirene permanecia, a discussão baixara o tom, era possível ouvir algum vizinho mais desesperado e mula manca berrar silêncio, ou trancar as janelas. Após anos morando neste cortiço, confesso estar acostumado a tais cenas. E pensar que, com tantas coisas, nada em mente para transformá-la num texto. Talvez medíocre, como os escritos das noites anteriores, mas a inspiração não me vinha.
Sei que o pessoal da redação anda comentando, um zunzunzum dizendo que escritor e jornalista velho nem sempre é como uísque, mas não estou a ponto de me preocupar com tal posição. Apenas estou intrigado com a qualidade dos textos que deixaram a desejar nos últimos dias. E falando em uísque, olhei para o copo, vazio. Se cada vez que iniciasse o texto tivesse que interromper para buscar algo, jamais a crônica seria escrita. Logo voltei com a garrafa e uma porção de amendoim torrado. Coloquei-os ao lado do maço de cigarros e, enfim, estava decidido a iniciar a crônica.
O dedo já pronto a disparar a letra f e, um ronco de motor, gritos abafados e um automóvel apressado com os pneus gritantes me furtaram. Novamente olhei para Cachimbo, que dormia um sono leve. Com certeza não estava preocupado com as crônicas do dia seguinte, que seriam publicadas no seguinte ao seguinte. Já o uísque não surtia efeito, o cigarro apagava-se entre fumaça e esquecimento. Restara o quadro na parede, bobagem, restara a janela, silenciada. Painéis acesos, poucas luzes de néon, uma ou duas almas vagando pela calçada se arrastando embriagadas e sem destino, e um táxi amarelo que rapidamente virara à esquerda. Com certeza ia em direção ao Bexiga. Chega! Atingi o limite da mediocridade! Além de não escrever, tentava adivinhar o percurso dos táxis e ambulâncias que rapidamente cruzavam a avenida.
Ao longe, a banca de revistas era visível, fechada. Somente às cinco da manhã abriria. Quantas tantas vezes eu ficava da janela a olhando andar dengosa, comprando revista de moda, querendo ser elegante para que pudéssemos jantar fora.
Ainda restara algum tempo, umas quatro horas. O suficiente para um bom cochilo. E por falar em banca de jornal, me lembrei da crônica, que não estava pronta. Logo viriam à minha porta, lá pela seis horas.
Talvez como Gregor Sansa, eu me transformasse num inseto e não conseguisse levantar da cama. Não precisaria abrir a porta e, não que a crônica não estivesse pronta, porém ficaria impossibilitado de entregá-la. Com certeza iriam embora e jamais voltariam. Ou voltariam mais tarde ou no dia seguinte, e logo desistiriam. Olhei para Cachimbo, que novamente me olhara. Não sei se pelo excesso de uísque, Cachimbo balançou a cabeça negativamente e voltou a dormir.
Já aceitava e talvez devesse agradecer, ela não mais retornaria. Estava decidida em sua última carta, mulher geniosa. Talvez pela diferença de idades, ela ainda uma jovem com a vida pela frente; eu, um velho beberrão e mal humorado que tentava ensinar-lhe os truques do mundo. Ninguém sabe os truques do mundo.
Uma das mãos na quina da janela, a outro segurando o queixo, posição que não me inspirara nunca, apenas uma falsa alusão aos bustos de praça. Num instante minha atenção fora roubada. Olhei, em princípio assustado, logo tentei me recompor. Olhei novamente. Não poderia ser possível, diante dos meus olhos daquela maneira. Alguém também deve estar vendo, me perguntei comedido. Caso contrário, seria necessário contar. Foi num estalar que me veio a idéia. Olhei às janelas do prédio, nenhum mula manca olhando à avenida. Corri à mesa, sentei, um gole antes de escrever, para estar preparado.
Espaço, espaço...espaço. Palavras, pá-lavras e pála-vras. Algumas ficaram por aí, vagando alcoólatras. Ainda faltava o título, faltava mais, eu precisava descrever. Outro gole. Já não restara tempo para acender outro cigarro, o texto parecia interessante e ébrio, apesar de absurdo. Levantei, corri à janela e olhei. A inspiração vinha à tona. Voltei à cadeira, junto à mesa, e mais pá-lavras.
As mãos escreviam como se tivessem vontade própria. Fixei os olhos por instantes, as imagens invadiam minha retina com vibração, as luzes eram reluzentes, nem ao menos um piscar. Ponto parágrafo. Nem percebi se Cachimbo ainda dormia, com certeza sim. Como um pintor observando sua inspiração e a descrevendo, não com tintas, com letras, todas vivas e, logo aconteceria o último ponto, o Final.
Mas eu não encontrava o triunfante desfecho. Não encontrava realidade suficiente que desse credibilidade aos escritos. Era necessário terminar a crônica, mas como? Li, reli, e nada! Voltei à janela, esta não me desapontaria, salvadora janela, e...e...já não estava mais lá. Desabei!
Alguns instantes não me foram creditados. Como? Onde? Por quê? ??? Havia desaparecido! Como, se há instantes...??? Restara voltar à mesa e terminar de contar... mas o quê contaria? Jamais diriam ser verdade, tal absurda história. Pensei em descer e procurar melhor, talvez não conseguisse ver da janela. Talvez tivesse afastado, poderia estar por ali, nada adiantaria. Voltei à máquina, retirei a folha, peguei o texto com uma das mãos e o esmaguei. Logo em seguida caminhei em direção à janela. Ouvi uma voz ao fundo, que dizia para que não fizesse aquilo, mas eu estava decidido!
- Alguém há de acreditar, não faça isso!
- Cala a boca, voz maldita! Ela nunca mais vai voltar!
Já estava decidido. Olhei para a janela, o silêncio, passos pela calçada, a banca de jornal fechada, outro táxi, que desta vez virou à direita, tudo como sempre, e faltava algo, que há pouco eu vira e desaparecera. Não importava mais. Coloquei a mão fora da janela e a abri. Lentamente o texto foi caindo. Não cheguei a vê-lo chocar-se contra o chão. Todas aquelas palavras esmagadas. Voltei, com um sorriso cínico. O texto fora assassinado. Agora seria impossível entregá-lo. Olhei para Cachimbo, que dormia continuamente.
Decidi pelo mesmo. Noutro dia, talvez uma desculpa, ou a verdade. Logo me perdi no corredor. Deixei para trás o maço de cigarros, a velha máquina, a janela aberta, as luzes acesas, o quadro e outros pormenores. Apenas passei a mão na garrafa de uísque e a levei ao quarto, boa companheira. Cachimbo percebeu e logo veio atrás, sem alarde. Então um silêncio invadiu por quase completo e uma ponta de curiosidade veio, perguntando para onde teria ido. Fechei os olhos, resisti. Finalmente o sono!